A tokenização consiste na representação digital de um ativo através da utilização de uma tecnologia de registo distribuído (como é o caso da tecnologia blockchain). Em termos técnicos, a tokenização é implementada através da publicação, numa tecnologia de registo distribuído, de um smart contract que criará um determinado número de tokens. As regras e condições para o registo da propriedade sobre os tokens e para a transmissão desses tokens são codificadas no smart contract.
Os ativos tokenizados podem ser ativos reais, que existem fora da tecnologia de registo distribuído (off-chain), ou ativos que apenas existem na tecnologia de registo distribuído (on-chain). No primeiro caso, a tokenização de ativos traduz-se numa mera representação digital desses ativos, devendo ser assegurado, de um prisma jurídico, que a titularidade do token fica de facto ligada à titularidade do ativo real que este representa, e que a transmissão do token na tecnologia de registo distribuído implicará a transmissão da propriedade sobre esse ativo (alguns ativos que têm vindo a ser identificados como tendo o potencial de poderem ser tokenizados são os bens imobiliários, as peças de arte e alguns artigos de luxo). No segundo caso, a tokenização traduz-se na própria forma que o ativo observa e o registo e a transmissão do token na tecnologia de registo distribuído implicará necessariamente o registo e a transmissão da propriedade sobre esse ativo.
A tokenização serve diversas importantes funções: em primeiro lugar, permite reduzir os custos de transação, ao eliminar a necessidade de recurso a intermediários (os tokens são emitidos pelo emitente e subscritos diretamente pelos investidores através de chaves criptográficas, sendo creditados nas respetivas carteiras digitais, também designadas por wallets); em segundo lugar, permite aumentar a liquidez dos ativos tokenizados, ao facilitar a respetiva transmissão; em terceiro lugar, permite democratizar o acesso aos ativos tokenizados.
O Regulamento MiCA1 regula a tokenização que esteja ligada aos criptoativos – ou seja, todos os ativos digitais que sejam abrangidos pelo conceito de “criptoativo” previsto no artigo 3.º, n.º 1 deste Regulamento – ao regular as atividades com eles relacionadas (a sua emissão, a sua oferta pública e a sua admissão à negociação e todos os serviços relativos a estes ativos). No entanto, importa salientar que este é apenas o início de um caminho a ser trilhado na criação de uma base legal para a tokenização de ativos, uma vez que muitos tipos de ativos tokenizados não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento MiCA (tais como os instrumentos financeiros tokenizados ou os ativos não fungíveis, este últimos popularmente designados como Non-Fungible Tokens).
O conceito de “criptoativo” do Regulamento MiCA
Conforme já referido, a tokenização permite a representação digital de ativos. A proliferação, no espaço da União Europeia, de vários tipos de criptoativos trouxe dificuldades do ponto de vista da qualificação jurídica desses ativos, criando o risco de os Estados Membros classificarem o mesmo criptoativo de forma diferente. Tal risco resultaria numa fragmentação da regulação dos criptoativos na União Europeia.
Com o Regulamento MiCA, a lógica do legislador europeu foi a de criar um quadro legislativo específico para os critpoativos que fosse viável a longo prazo, sendo passível de acompanhar a inovação e a evolução tecnológica neste setor2 e de potenciar o seu desenvolvimento. Por este motivo, o conceito de “criptoativo” previsto no Regulamento é intencionalmente amplo, com o objetivo de abarcar os criptoativos que atualmente não se encontram abrangidos pela legislação europeia em matéria de serviços financeiros.
O Regulamento MiCA define “criptoativo” como “uma representação digital de um valor ou de um direito que pode ser transferida e armazenada eletronicamente, recorrendo à tecnologia de registo distribuído ou a uma tecnologia semelhante”3.
Assim, os requisitos do conceito de “criptoativo”, são: (i) a transferibilidade; e (ii) o recurso à tecnologia de registo distribuído (ou a uma tecnologia semelhante).
No que toca ao requisito da transferibilidade, importa atentar que apenas os criptoativos que podem ser transferidos entre diversos detentores cumprem este requisito. Os criptoativos que sejam apenas aceites pelo emitente e cuja transferência direta para outros titulares seja tecnicamente impossível ficarão, por isso, excluídos do âmbito de aplicação do Regulamento MiCA. A título exemplificativo, ficarão excluídos do âmbito de aplicação do Regulamento Mica os criptoativos atribuídos pelas empresas a consumidores ao abrigo de programas de lealdade que apenas possam ser utilizados no ecossistema dessas empresas.
Em relação ao requisito da tecnologia, o Regulamento MiCA define tecnologia de registo distribuído como “uma tecnologia que permite o funcionamento e a utilização de registos distribuídos”. Refira-se que a tecnologia de registo distribuído permite gravar e partilhar informação simultaneamente em diversos dispositivos de armazenamento, sendo a manutenção e supervisão da informação partilhada feita pelos próprios utilizadores da plataforma. A tecnologia blockchain é um tipo de tecnologia de registo distribuído que utiliza um método de encriptação na qual a informação é armazenada em blocos e depois encriptada (pelo facto de todos os blocos estarem interligados entre si, não é possível adicionar nova informação a blocos já encriptados).
De acordo com o Regulamento MiCA, estarão abrangidos pelo respetivo âmbito de aplicação os criptoativos que recorram à “tecnologia de registo distribuído ou a uma tecnologia semelhante”. Também aqui se evidencia a intenção do legislador europeu de adotar um conceito amplo, quer por ter optado em não restringir o conceito de criptoativo à utilização da tecnologia blockchain (como chegou a ser proposto durante os trabalhos preparatórios do Regulamento MiCA), quer por admitir que possa ser utilizada uma tecnologia “semelhante” à tecnologia de registo distribuído (permitindo, assim, enquadrar no conceito de “criptoativo” quaisquer ativos que venham a ser criados com recurso a novas tecnologias que venham a surgir, e que, não sendo tecnologias de registo distribuído em sentido estrito, possam ser aproximadas deste tipo de tecnologia).
Apesar de não estar expressamente incluída no conceito de “criptoativo”, a característica da fungibilidade aplicar-se-á, a contrario, aos criptoativos regulados ao abrigo do Regulamento MiCA, uma vez que o artigo 2.º, n.º 3, do mesmo diploma exclui expressamente do respetivo âmbito de aplicação todos os criptoativos que sejam únicos e não fungíveis. A fungibilidade consiste na possibilidade de trocar determinado critpoativo por outro da mesma espécie. Além disso, a fungibilidade permite que o valor de cada criptoativo possa ser determinado no mercado por comparação com os restantes criptoativos da mesma espécie ou equivalentes.
Categorias de “criptoativos” ao abrigo do Regulamento MiCA
O Regulamento MiCA estabelece três categorias de “criptoativos”, tendo a classificação por base os criptoativos procurarem, ou não, estabilizar o seu valor por referência a outros ativos.
Caso os criptoativos procurem estabilizar o seu valor por referência ao valor de uma moeda fiduciária com curso legal, estes serão denominados por “criptofichas de moeda eletrónica” 4. A função deste tipo de criptoativos é muito semelhante à da moeda eletrónica: tal como a moeda eletrónica, estes criptoativos são substitutos eletrónicos de moedas e notas, sendo provável a respetiva utilização para a realização de pagamentos. Estes criptoativos apenas poderão ser emitidos por entidades autorizadas, como instituições de crédito ou instituições de moeda eletrónica. Outro requisito essencial da emissão de “criptofichas de moeda eletrónica” é que seja conferido aos respetivos detentores um crédito sobre o emitente que lhes permita a obter o reembolso do valor monetário das “criptofichas de moeda eletrónica” por eles detidas, mediante pedido efetuado a qualquer momento junto do emitente.
Os criptoativos que não sejam “criptofichas de moeda eletrónica” e que procurem estabilizar o seu valor, não por referência ao valor de uma moeda fiduciária com curso legal, mas sim por referência a outro valor ou direito, ou a uma combinação de ambos (por exemplo, commodities, outros criptoativos, um conjunto de moedas fiduciárias com curso legal ou um cabaz de ativos) serão classificados como “criptofichas referenciadas a ativos” 5. Este tipo de criptoativos tem o potencial de serem utilizados como reserva de valor ou como meio de pagamento pelos respetivos detentores, o que traz associados mais riscos do ponto de vista da estabilidade financeira e da integridade de mercado. Por este motivo, os respetivos emitentes são sujeitos a um processo de autorização (exceto se estiverem em causa instituições de crédito) e a apertados requisitos prudenciais quanto aos seus ativos de reserva e requisitos de fundos próprios.
Tanto as “criptofichas de moeda eletrónica” como as “criptofichas referenciadas a ativos” caem no conceito, utilizado na indústria, de stablecoins, por o respetivo valor se encontrar indexado ao valor de outro ativo ou conjunto de ativos.
Por último, o Regulamento MiCA prevê ainda uma terceira categoria de criptoativos, que consiste numa categoria residual, quando os criptoativos não possam ser classificados como “criptofichas de moeda eletrónica” nem como “criptofichas referenciadas a ativos”. A emissão deste tipo de criptoativos exige apenas a preparação, notificação à autoridade competente e publicação de um “livrete do criptoativo” e das comunicações comerciais aplicáveis, não sendo exigido aos respetivos emitentes um processo de autorização. Enquadram-se nesta categoria, entre outras, as “criptofichas de consumo” 6 ,cujas finalidades são meramente utilitárias, visando conceder ao detentor o acesso a um determinado bem ou serviço disponibilizado pelo emitente.
Como exemplo de “criptoficha de consumo”temos as criptofichas emitidas na blockchain da EventMB Studio – visam funcionar como bilhetes para eventos -, Basic Attention Token - permitem aceder a serviços do navegador Brave -, ou o Golem Network Token – permite alugar o poder computacional dos computadores da rede .
Conclusões
O Regulamento MiCA estabelece um regime harmonizado aplicável aos criptoativos no espaço europeu. A existência de uma base jurídica sólida que regule as atividades relacionadas com os criptoativos permitirá aos emitentes e aos investidores atuarem com maior segurança, o que, por sua vez, potencia o desenvolvimento do setor dos criptoativos. Este diploma é ainda um importante primeiro passo na regulamentação do fenómeno da tokenização, o qual, face aos benefícios que a tecnologia de registo descentralizado apresenta para o registo e transmissão de ativos, tem vindo a extravasar o mercado dos criptoativos.
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- Regulamento (UE) 2023/1114 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2023, relativo aos mercados de criptoativos e que altera os Regulamentos (UE) n.º 1093/2010 e (UE) n.º 1095/2010 e as Diretivas 2013/36/EU e (UE) 2019/1937.
- Cfr. Considerando 16 do Regulamento MiCA.
- Cfr. Artigo 3.º, n.º 1, parágrafo 5 do Regulamento MiCA.
- Cfr. Artigo 3.º, n.º 1, parágrafo 7 do Regulamento MiCA.
- Cfr. Artigo 3.º, n.º 1, parágrafo 6 do Regulamento MiCA.
- Cfr. Artigo 3.º, n.º 1, parágrafo 9 do Regulamento MiCA.